domingo, 23 de agosto de 2009

"A moda é Black" O adolescente afro-descendente paulista e o dilema entre os diferentes estereótipos do negro.


"A moda é Black"
O adolescente afro-descendente paulista e o dilema entre os diferentes estereótipos do negro
Antonio Pereira dos Santos*

Palavras chave: Educação, preconceito, racismo, diversidade, negritude.




Desde que comecei a lecionar nas escolas públicas da rede Estadual de Ensino em São Paulo, mais precisamente na região periférica da cidade de Taboão da Serra, onde se percebe claramente uma grande incidência de afro-descendentes, um fato me chamou a atenção: entre esse grupo de alunos podia-se perceber claramente a convivência de diferentes estilos de negritude. A diversidade ia desde aqueles que assumiam o estereótipo do negro brasileiro (um tanto despreocupado com a sua negritude, ou mesmo tentando mascará-la), até àqueles que se aproximavam mais do estereótipo norte-americano (cujo estereótipo às vezes assume um caráter peculiar de assunção total da sua condição, o que se reflete através das vestimentas, da forma de arrumar o cabelo etc., e às vezes assume a situação oposta, ao tentar velar a sua negritude através de um estilo que inclui "esticar" o cabelo, entre as meninas ou utiliza-los de forma semi-raspado, entre os meninos). Ao se tratar dos estilos intermediários pude perceber os "jamaicanos", assim como eles mesmos costumam se auto-denominar. Este último trata-se de um estilo que se aproxima mais do estilo do cantor Bob Marley, que divulgou o ritmo afro-jamaicano do Reggae pelo mundo, influenciando inclusive boa parte da juventude americana.

* Licenciado em História pela Universidade Bandeirante de São Paulo. É professor de Educação Básica II (PEB II) na Rede Estadual de Ensino em São Paulo-SP.

Com o passar do tempo, à medida que conhecia melhor meus alunos, fui percebendo também que, da mesma forma que o corpo desses afro-descendentes (através dos seus estilos de roupas, cabelos e comportamentos) revelavam uma convivência nem sempre pacífica com diferentes esteriótipos do negro, da mesma forma essa diversidade também se refletia nos estilos de música apreciados por eles. Geralmente os estilos mais apreciados variavam entre o Reggae, Rap, Funk e sumariamente o Black. Entre esses estilos, pude perceber em uma conversa com um aluno que o black, nos últimos anos, tem se imposto como um traço inconfundível da maioria dos afro-descendentes de nossas escolas.
Durante uma aula em que elucidava questões como racismo, violência e repressão policial contra negros, através de uma música do grupo paulistano Racionais Mc's, fui alertado por um aluno de que o Rap "já havia saído de moda" e que agora "A moda era Black". Esse episódio me fez pensar com mais cuidado sobre essa tendência muito forte de adolescentes e jovens brasileiros se identificarem tão fortemente com culturas afro-americanas em detrimento das afro-brasileiras.
Em minhas reflexões e prática pedagógica, passei a me perguntar o porquê desses adolescentes se orgulharem tanto de se assemelharem a Bob Marley, a cantores de black, ou integrantes do movimento Hip-Hop norte americanos, se distanciando consideravelmente de uma identidade negra brasileira, à moda, por exemplo, de grupos musicais ligados à presença dos povos bantos no Brasil, como os grupos baianos Timbalada, Olodum, Ilê Aiê etc. Entre as perguntas que eu me fiz repetidas vezes estavam a seguintes: o que afasta esses adolescentes do estilo afro-brasileiro de ser? E por que preferem se assemelhar aos negros norte-americanos? Depois de algumas conversas, observações e entrevistas informais, passei a confirmar o que já suspeitava: a aproximação com o estereótipo de negro norte-americano, na verdade camuflava uma tentativa de fuga dos estereótipos e estigmas do preconceito racial tão presente em nosso cenário social brasileiro.
Dessa forma, o comportamento desses adolescentes, seja em seus estilos culturais, seja nas suas preferências musicais, terminavam se explicando através da não identificação com um estereótipo de negro marcado por um forte discurso de natureza racista, fundamentado inclusive em teorias pseudo-científicas em relação á pretensa inferioridade do negro.
Muito já se falou das peculiaridades do racismo à brasileira (RUY:2007). Estas mesmas peculiaridades que associam o negro à indolência, feitiçaria e ao atraso, terminam levando jovens afro-descendentes mesmo que de forma involuntária e inconsciente a tentativa de fugir desse estigma, buscando em outros modelos de negros "que deram certo" a identificação que não conseguem encontrar nos discursos sobre o negro que percebem no Brasil. Até mesmo por que para o adolescente da escola pública das periferias das grandes cidades como São Paulo, assumir a sua negritude com decisão pode significar também ter que assumir o peso do preconceito racial que em alguns ambientes escolares ainda é cruel e explícito.
Um caso emblemático de descrição das inúmeras situações de discriminação racial na escola é o trabalho da professora Eliane Cavalleiro, Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. Ali a professora, depois de uma séria e acurada pesquisa numa escola pública de São Paulo, pôde perceber e descrever com propriedade a dificuldade de alunos, sejam crianças ou adolescentes que de uma forma ou de outra assumem a sua condição de negro na escola.
Para esses adolescentes negros então, fica mais fácil assumir uma negritude "norte-americana", e isso se dá de diversas formas entre esses adolescentes, do que assumir a condição de afro-brasileiro, tendo assim que arcar com as conseqüências de ser associado a uma visão preconceituosa e racista em torno do negro, como acontece até hoje no Brasil.
Esse tipo de comportamento entre os nossos adolescentes afro-descendentes nos leva a concluir que está em jogo uma questão de imaginário em relação ao negro. O conflito vivido por jovens e adolescentes brasileiros ao terem que escolher entre diferentes "estilos de ser negro" aponta na verdade para diferentes idéias que se tem do "ser negro". De forma objetiva, poderíamos dizer que, basicamente esses jovens vêem diante de si dois grandes extremos ou modelos de ser negro: o negro brasileiro, visto pela maioria da população como aquele que "não deu certo", ou seja, depois da abolição não foi absorvido pelo mundo do trabalho assalariado e terminou marginalizado. E o modelo de negro norte-americano, que mesmo tendo sido explorado como escravo nas grandes plantações de algodão no sul do país, após muita luta, conseguiu se emancipar e inserir-se no cenário social, político e econômico, e que, portanto "deu certo". É escusado dizer que no momento de suas vidas em que esses adolescentes necessitam de paradigmas que consolidem a sua personalidade em formação, o segundo modelo se apresenta como o mais viável e confiável. O que explica o comportamento dos jovens ao preferirem o ritmo musical black norte americano ao Olodum baiano, o Samba carioca ou mesmo ao rap paulistano (apesar de este último também ter suas origens nos Estados Unidos).
Não obstante as grandes iniciativas de pesquisadores e estudiosos da questão do negro no Brasil como Marina de Mello e Souza, Kabengele Munanga etc. Muito ainda tem que ser feito para se chegar a um nível de mudar a consciência dos adolescentes e jovens brasileiros acerca da importância de se assumir a condição de negro no Brasil e de se combater as inúmeras formas de preconceito racial que atinge boa parte da população negra no nosso país. Temos que admitir que a Lei 10.639 é, inquestionavelmente um passo, assim com as políticas afirmativas também o são. No entanto muito ainda se tem a fazer.
Uma de nossas tarefas como educadores é justamente esclarecer aos nossos alunos que a diversidade étnica e cultural, tão presente no Brasil é na verdade uma das nossas maiores riquezas. Esta claro também que, diferentemente do que se afirmou em tempos passados, a tão famosa "democracia racial" não passa de um mito, enquanto que a miscigenação no Brasil se procedeu de uma forma extremamente violenta, como atesta o próprio Darcy ribeiro (RIBEIRO:2001). E como o processo civilizatório foi violento, a mesma violência se observa nas relações sociais entre aqueles que se afirma como afro-descendentes e aqueles que ainda insistem em não reconhecer a natureza pluriétnica da população brasileira Nesse sentido a implementação da Lei 10.639 pode constituir para todos nós a possibilidade de se combater formas já cristalizadas de preconceitos contra o negro ao mesmo tempo que quitamos uma dívida secular com a população negra que tanto contribuiu e contribui com a construção desse país, desse povo que somos nós e dessa cultura tão rica que é a nossa. Nesses termos temos que assumir, juntamente com o próprio Darcy Ribeiro, que o negro se misturou tanto com o brasileiro, ao longo do processo civilizatório, que hoje o negro já não é mais o negro, mas o negro, somos nós. Com isso queremos dizer que ao contarmos a História da África e da Cultura Afro-brasileira nas salas de aula, como prevê a Lei em questão, na verdade estaremos contando a nossa própria história. E dessa forma já não haverá espaço para conflitos de escolhas entre "estilos de negro", ou mesmo não haverá mais espaço para se optar por esse ou aquele modelo de negro, pois a "nossa forma de ser negro" já estará completamente identificada e assumida. Desta forma, nossos alunos já não serão mais ideologicamente conduzidos à assimilar uma tendência norte-americana tão distante de sua realidade, pois haverá espaço suficiente para todas as formas e manifestações culturais, sem que uma implique na superação ou supressão da outra.

Palavras chave
Educação, preconceito, racismo, diversidade, negritude.

Referências Bibliográficas

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO/CONSELHO PLENO/DF
Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. 23001.000215/2002-96. CNE/CP 3/2004, aprovado em 10/03/2004. Proc. 23001000215/2002-96.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. (Org.) Brasil Afro-Brasileiro. Autêntica. Belo Horizonte, 2001. 352p.

RAMOS, Artur. As Culturas Negras no Novo Mundo. Col. Brasiliana, Vol. 249. Editora nacional. São Paulo, 1979. 248p.

MUNANGA, Kabengele. & GOMES, Nilma Lino. Para entender o negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos. Global. São Paulo, 2006. 172p.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil Africano. Ática. São Paulo, 2006. 175p.

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. Editoras Humanitas/FFLCH-USP e Contexto. São Paulo, 2003. 110p.

FRANCA, Edson; RUY, José Carlos & VIEIRA, Manoel Julião. (Org.). Um olhar negro sobre o Brasil: dezoito anos de UNEGRO. Ed. Anita Garibaldi. São Paulo, 2007. 158p.

SILVA, Vagner Gonsalves da. Intolerância Religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. EDUSP. São Paulo, 2007. 328p.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. CIA das Letras. São Paulo, 1995. 476p.


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